sábado, 28 de junho de 2008

Assim é se te parece

Eu não quero ser diferente. Eu não quero ser estranha. Gostaria imensamente de desfrutar o calmo pasto do rebanho mas pressinto que boa parte da minha vida tenha sido gasta no esforço de passar despercebida e misturada aos demais. No entanto, quanto mais e mais tentei não causar relevo, o inverso deste desejo me pegava pelos ombros e me fazia saltar do tranqüilo anonimato. E só quis, durante boa parte da minha vida, me manter assim: no discreto ofício de sentir.

No fundo, creio que eu não seja um resultado, mas uma síntese de todos os inversos e contrários daquilo que tentei não ser. Sou um quebra-cabeça que a todo tempo se reorganiza. Sou de uma normalidade excêntrica.

Sou comum. Sou extremamente comum, muito embora procure as emoções dissonantes na previsível passagem dos dias. Por isto devo contar para que não se enganes comigo. Presumo que não saibas o quanto sou frágil, que tenho medo de alturas e não gosto da excitação dos perigos. Não espero que me entendas neste jeito próprio de olhar por todos os ângulos, a mania de virar a cabeça e querer sentir a vida por outra perspectiva ainda que com desconforto. Estou a me esforçar, olho, imagino, repagino o ambiente, e se te recorto em busca do original da tua vida é porque só posso amar aquilo que me surpreende, e se te surpreendes. Só posso te desejar se me ensinas a novidade do que eu já sabia. O cotidiano das pequenas coisas, os acontecimentos banais, as obviedades, me encantam.

Eu preciso te confessar um segredo:o imperceptível me arrebata, me comove, os pequenos detalhes me paralisam. E tudo isto, subitamente, se torna desnecessário, mas também precisa ser dito, sem medo do lugar comum. Grandes espetáculos se fazem sob o conjunto dos detalhes. Devo te lembrar que todos nós somos cegos e o que nos faz enxergar, ver o mundo, é a imaginação. Ah, quanto delírio escondido, quanta interpretação guarda o detalhe...

Saiba que de repente, me deu uma enorme vontade – uma vontade, originalmente comum e sem motivo aparente – uma vontade concreta e pura de entregar-me. Vou me entregar à minha mais profunda cegueira, beijar a palma da tua mão e te deixar este segundo imaginado que jamais termina, marcado para sempre.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

A Vida na Chama da Vela

...a madrugada tem mistérios que devem ser tomados como quem degusta uma bebida rara. A madrugada e seus mistérios devem chegar sem atropelos porque a revelação trazida no escuro da noite, no alvorecer do dia, pode ser incômoda, como um carinho que ainda não se está preparado para sentir. É preciso estar pronto para recebê-lo, pois o escuro da noite tem a doçura que não transborda. O silêncio da noite dorme balançante na chama da vela, a vida existe e eu a sinto, no cheiro de oliva e ervas. Eu respiro o escuro da noite que entra pela minha porta, a madrugada está simples e sem mistérios porque eu estou simples e sem mistérios, estou primitiva...

...meditar é não pensar, é outro estado de ser, é entender de um modo não humano, ir onde os pés não chegam, onde as mãos não tocam. Não há verbo no meu pensamento apenas o mistério dentro de mim. Não há razão, não há objetos, nem eu, nem você. O que há é a ausência do corpo noutro corpo profundo, onde não enxergo com estes meus olhos que parecem cegos. Medito. Já não preciso dos sentidos na madrugada porque eu a bebi vagarosamente e com delicadeza. Medito.

...A madrugada brilha, me toma, ela inteira e seus mistérios. O silêncio é intenso. Estou só e o silêncio é meu. Estou incrivelmente só. Não há o que temer, sou um eu sem eu, sem corpo, mas minhas mãos flamejantes tocam o escuro da noite, a madrugada, que recebo como um carinho que estou preparada para sentir. Meu espírito está em festa.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os Rituais do Silêncio

Atrás da porta só me resta o silêncio, as frases dos objetos, o meu proprio caminhar, o som dos gestos que faço. Eu faço gestos pela metade como em uma cena naturalista. Entro, mas deixo a porta entreaberta como um código, pois isso de alguma forma me revela. Penso no tudo que gostaria de falar, no discurso certo, tantas coisas que não sei, então eu deixo a porta entreaberta e só me resta o silêncio.

Eu sou deste modo.

Eu faço gestos pela metade e imagino tudo por inteiro porque a ação me é dificil e contida, mas não por falta de coragem e crença na minha intima vontade de estar onde estou, na tua frente, no mais absoluto silêncio de que uma pessoa é capaz.

Eu sou deste modo.

Atrás da porta só me resta o silêncio e gestos pela metade. Eu faço gestos pela metade, deixo a porta entreaberta, para te ver livre ao esticar o braço e sair. Eu te quero livre. Te quero sem a imoral necessidade de explicação. Não há o que explicar, não há verbo que seja maior do que aquilo que te entrego, essa nudez de silêncio, a necessidade de te ter. Não há o que dizer: estou à tua espera, como quem reza, como quem medita, estou no mais absoluto impacto da tua presença.

Atrás da porta só me resta o silêncio e gestos pela metade porque a palavra me constrange, a palavra limita o momento, a palavra não me alcança - eu que estou pelo avesso. Deixa-me então com aquilo que me escavou, deixa-me em silêncio, com os gestos pela metade e que, subitamente, me tomaram por inteiro. Diante da vida me consumindo qual a palavra cabe no meu silêncio? Não quero palavras, quero lavas.

Eu sou deste modo.

Eu faço gestos pela metade. Eu rezo em meu frenético silêncio, eu rezo para que o silêncio me venha acolhedor ao te olhar nos olhos. Como em um ritual já vivido e espontâneo, espero e fico minimalista. Observo os objetos, a luz, uma gravura na parede. Eu te espero. Estou a respirar incensos e a carregar óleos, quero ler o cântico dos cânticos, quero fazer poesia.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Fantasia

Pela janela passa brisa fresca e noturna. O barulho da rua se mistura, na escuridão sem lua, ao frigir suave das ondas. No ar um cheiro de maresia. Causam-me felicidade os odores e este, especialmente, entra pela janela, poroso e ardendo.

Já passa de meia-noite e o mar invade o quarto. Sinto areia arranhando as pernas, ouço a melodia que vem da praia e na escureza da noite, nas águas de maré vazante, batem mornas as espumas no úmido dos meus cabelos.
O céu escuro e macio se confunde comigo, Lilith, lua negra, sobre o mar.
Sou uma unidade de coisas, sou o começo do mundo.

Entra o ar perfumado, queima lentamente e doce e tão brando invade o pensamento esse cheiro. É impossível ignorá-lo, e como deixar de perceber o que é belo? Aquilo que nos sonhos se encontra, nas emoções involuntárias existe e em velhas canções palpita? O som antigo do mar acalentando a noite - feita de meia luz e penumbra – e este ar cerrado de maresia. Estou, sou, hoje e sempre, esta noite, este perfume.
Se nas mãos seguro areias, se na boca carrego sal, se entre as pernas sou mulher, como explicar a cauda de sereia?

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O Gosto Do Olhar

Eu gosto de olhar
Eu gosto de te olhar
Te olhar como quem vê pela primeira vez
E pela última
O assombro que é meu
Ao te ver
E te querer nos meus olhos

O todo não me interessa
A imagem do mundo
A grande angular
Não me excitam
Eu te gosto é no detalhe
Eu gosto é da curva
A curva da tua mão

O todo não me interessa
Eu te gosto é no detalhe
Do contorno do teu olho, o risco, a cor, a dor,
O brilho e o cansaço
Eu gosto mesmo é quando você me olha


Eu gosto muito, muito da tua voz
E mais, muito mais do teu silêncio,
Desta maneira tua sem som
Quando fico bem quieta ouvindo a tua respiração


Ah, eu adoro, adoro a tua beleza
A que espalhas pela rua
Declarada,
A tua beleza fratura exposta
Próspera, farta e inquieta
Mas o prazer da tua beleza pertence ao mundo
E a ele te dou sem medo
Porque eu te quero gostar nos detalhes
Da composição imperfeita
Dos teus olhos de breu
Da tua boca o formato
A cor ocre, o sabor de minério
Uma linha triste que se forma
Quando pensas que estou desatenta

Eu gosto de olhar
Eu gosto de te olhar
O todo não me interessa
Eu te quero amar em partes
Juntas em cada detalhe