sábado, 27 de setembro de 2008

Ms. Holiday Sings



Noite de Outono
O dia passou sereno
Ficou arrumado na prateleira
Em linha reta
Ao longe,
Ouço o sino da Igreja que quando badala
Às seis horas da tarde
O sagrado avisa
Que um pouco da vida morreu
Mas os anjos estão a caminho
Preparando a noite fria
Com uma pincelada mal acabada no Céu

A noite é fria, e é linda
A noite é fria, e é linda
Como as mulheres que existem de verdade
No escuro das cores opacas

Meu roupão é branco e felpudo
Os cabelos estão molhados
A luz do abajur ilumina o livro

E e
smaece o quarto
Súbito e monossilábico ele entra
E agora é dele o meu santuário
Livro fechado, pulo da cama
Pego o vinil
Ms. Holliday na vitrola
Arranha, som e poeira
O cheiro de lavanda e rua
Confundem o quarto
Fazem, a curva do meu dia

Murmuro em um abraço
O meu silêncio no pescoço dele
Lady Day sings

Enquanto veste-me de veludos
A sua voz de outros mundos
E me ensina a rouca melodia
A musica que me faz doer intesa e minimalista

A camisa de linho dele
Pálida,
Se mistura no encontro do bordado
Ao meu roupão excessivamente alvo
E ao úmido do meu cabelo lavado
Que me faz parecer ainda mais jovem

Pingos de água pelo chão
No meu roupão muito branco
Old fashioned sou eu
Quem solta os laços
Do meu roupão pueril antiquado
Envolto no cheiro da rua, o linho amassado
Enquanto Ms. Holiday sings embriagada de gim
Me ensina a dançar, a dança
Que eu não sei dançar, a dança
My sweet lady sings
Don't explain
Enquanto eu sinto por dentro
O ritmo tóxico do Blues

Sinto, logo, escrevo

- Você sabe?...
- Quê?
- Que você é estranha?
- Sou?
- É...(silêncio) (risos)
- Em que sentido?
- Estranhamente bom...(silêncio) (risos)

É o que dizem e quando não dizem pensam. Concordo. Tenho uma tendência para a estranheza, mas do tipo discreto, com uma vontade enjoativa de estar no contexto. Sei não, sei lá. A expressão: “sinto, logo existo” me atraí e me transforma em uma fábrica ambulante de equívocos. Nem sempre para mim, na maioria das vezes para os outros.Talvez, nascer antes do tempo, tenha me perturbado os nervos de tal forma que as adversidades, e até hoje, as situações dramáticas, provocam sentimentos heroicos. Urgência e medo me deixaram a percepção em outra freqüência, imprimiram a sensação de que a vida – por ser uma mistura do infinito com um breve instante – é uma melodia inacabada que precisa de um som, o som que irá pontuar a aventura da descoberta, do assombro e do frescor das alegrias. Viver é um tema musical variado onde em cada partitura se conta uma história. Ah, desde cedo ouço trilhas sonoras. Trabalho delicadamente, na ponta do lápis, a sentir o movimento das notas, a respiração, as pausas e na sucessão dos acontecimentos - fatiar, rechear, compor uma saga. Escrevo. Escrevo a bico de pena, esculpindo as letras em uma caligrafia nervosa e ininterrupta para que a vida seja um prazer dos sentidos. Escrevo como um dom de alfaiataria para vestir a realidade: interessante, original, sob medida. Escrevo a invenção da vida, e se abrem os portais ocultos. Sigo em frente. Não quero a explicação.  Vou simplesmente viver o mistério. Cavar, mergulhar, cuidar. 
Desembrulho palavras, ouço. Faço nascer outras vidas. Esqueço todas as crenças e atravesso o tempo blindada por este prazer. Finco nas distantes terras - onde ninguém outrora pisou - a minha bandeira sem rótulos. Escrevo.

Identidade

Sobre este assunto sou completamente ignorante. A cada dia me convenço que tenho um problema de identidade. Múltipla. Faço colagens e conto histórias e há quem diga que já fui uma pessoa séria muito embora sempre esquisitinha, pensando coisas que quase ninguém pensava. Depois descobri que na verdade andava comungando a hóstia errada mas, independente da paróquia, este é um traço da minha identidade - a dissonância. Percebi que ser canhota faz parte da minha personalidade, sem grandes guerrilhas, e com muitas doses de tolerância. É assim mesmo, estranho.
Segundo Cristina Braga, meu mapa é de uma esquizofrenia saudável.
Virgem com ascendente em Gêmeos, Lua em Leão, meio do Céu me Áries, com quase todos os planetas morando em uma mesma casa. Uma república confusa. Múltiplas identidades. De fato tenho emoções que só a astrologia explica, e minha mãe também. Ela me disse um dia, como a lamentar um defeito, que o meu problema é ter este jeito muito apaixonado. Ah, a sabedoria das mães.
Eu gosto de gente. Gosto de inteligencia, do que é diferente, e gosto de ser sozinha. Ter a Lua em Leão acho bonito mas nunca sei ao certo o que isto quer dizer. Queria estudar em Sorbonne, tocar flauta, e ter uma moto, fiz tudo ao contrário e foi bom. A flauta eu toco, a moto adoro. Como adoro nadar, escrever, filosofia, adoro comer.
Acordo de bom humor, ainda que esteja a esperar o amor como quem espera um táxi em dia de chuva.
Tudo bem, sou paciente.
Enquanto não chega, cultivo identidades secretas.