domingo, 16 de novembro de 2008

Fragmentos Da História

...eu não penso em sexo, faz tempo deixei de pensar.
Pois bem devo falar a verdade. Somente o destemor da verdade vale a pena.
Sexo é mito. Mito a ser incorporado. O que faço todos os dias.
Sexo é um mito a ser bebido no café da manhã. Misturado ao leite, colocado no chá.
Agora, neste momento, que a gente conversa eu quero dizer que o mito nos serve de símbolo e vaga lembrança - fica congelado - está na realidade à espera da vida. Atavismo.

Quando nos encontramos para o cappuccino do fim da tarde, um pouco de espuma no canto da boca te retrata - e ao teu jeito muito peculiar de olhar ao longe. Chamo teu nome, chamo por dentro. Atavismo, mito, recordação do que ainda vai acontecer.

Os mitos de cada herói o definem. Devemos ser os heróis de nós mesmos e nos salvar a todo instante.
Viver o mito do sexo que repousa na mão sobre as minhas costas - quando te encontro no acaso do dia - e ausente de ti meu pensamento, sem o teu corpo, o mito clama pela vida.

Sexo é detalhe.
Ou de uma outra maneira pode ser o todo - com todas as partes.
Sexo é somente um dos detalhes que te compõem. Penso o todo e você a parte. Não consigo lembrar do teu corpo. Tenho tal incapacidade. O esforço de lembrar me cansa.
Não revelo a outros, nem mesmo entre fieis amigas nas noites de vinho e confissões picantes. Não revelo o que não tenho para comentar. Aliás, confissões picantes em geral me parecem fantasia, porque lembrar é uma forma correta de mentir.

De modo que, não te ressintas da verdade, mais minha do que tua: não lembro do teu corpo.
Não lembrar é um elogio que te faço, acredite. O corpo é invenção de quem precisa do limite. A infantil invenção do corpo deu nesta história moderna e previsível de encontros, verdades que aprisionam, vontades que enlouquecem, obrigações de sentimentos. Pasteurização.
O corpo, a nossa maior prisão.
O corpo subverte o sentir. O corpo, como o concebemos, traça a mecânica do desejo. Então, não lembrar é poderoso. Deixa as impressões que estas sim, cuidarão de ti, em mim.
A impressão é como um quebra-cabeça sempre incompleto, ou que se mostra na medida que nos ocupamos dele, e se completa apenas por uns minutos, aqueles minutos em que posso te ver.
Sou como uma exêntrica Penélope, a te fiar arduamente para te desmanchar depois.

Sexo é rótulo.
E rótulo me desgasta. Eu arranco, rasgo. Desprezo.
Rótulo nenhum me prende. Rótulo nenhum me define.
O amor eu jogo fora o amor que não é meu. Este amor asséptico, não.
Quero o amor meu amor subversivo absoluto, anárquico leal, sem pronome e propriedade.
Amor meu, amado meu, me faça ver nos teus olhos a cor dos meus.

Eu não quero ser tua. Eu quero ser minha e que tu sejas teu. Quem sabe te alcanço um dia, nestes dias tão iguais, numa manhã banal eu descubra - como verdadeiramente és e nem mesmo tu sabias – e no inesperado silêncio que se fará, vou te beijar sim, sem nenhum desejo, eu vou te beijar sim, como nunca antes percebeste - neste modo de beijar tão puro e arrebatador da falta de desejo.

Nesta manhã de sol ainda que qualquer coisa fria - eu, em camisa de malha branca, em calça de pijama, o café me embaça os olhos enquanto eu sopro a fumaça entre nós, entre nós o ar perfumado.

Súbito, te beijei no frio Domingo, te beijei na normalidade do feriado. Acabou-se o mito, começa a vida, no mais erótico atavismo. De olhos abertos te beijei com a falta de motivo que rondava a manhã, quando sou então um pouco tua e tu és um pouco meu. Eu estou brilhando, e não me importa o corpo e nenhuma certeza sobre coisa alguma. O que posso querer além do sentido concreto que nasce quando te olho, quando me vejo? Presta atenção me escuta: não preciso de um corpo.

O sexo é um mito como o corpo que me limita o sentir. O corpo é um limite mais repressor do que a confissão católica. O corpo é o depositário de todas as confissões feitas, de todas as declarações sussurradas com angústia.
Deus, me livra do corpo, do corpo tecnocrata.
O divino me humaniza. Deus não tem corpo.
Estou no breve momento em que toco sua nuca na manhã fria. Entre uma golada e outra de café, embalada pela rotina estou, sem nenhuma conversa para ter. A dádiva de não se ter nada a dizer. A plenitude de não precisar falar.
Pouso minha mão sobre a sua, e isto nada representa.
Sento ao seu lado.
Súbito, te beijo na fria manhã, te beijo na normalidade do feriado.
É nos seus olhos que vejo minhas pernas entrelaçadas no seu pescoço e sinto as mãos tão obviamente masculinas nas minhas ancas, entre o vão dos meus ossos seus dedos. Um corpo deixa sim rastros na minha boca, deixa certas impressões na minha língua.
O café muito quente me aquece enquanto folheio o jornal.
E acontece o que acontece misturado ao pão quente de Domingo. No momento em que te beijei sem nenhum desejo.
Não queira me entender, ou se o fizer que seja sem aflições.
Um pouco de desconserto é sempre bem vindo.
Eu estou nas pequenas coisas e não tenha medo de nada porque tudo nos é permitido.
Peço que não tenha medo. A recriação de si mesmo não é tarefa fácil para quem é o próprio algoz e carceireiro. Estar vivo pode ser desconfortável.
Não é fácil. Para quem ousou não precisar nem do corpo. Para quem se desobrigou, o mundo quer o castigo.
O que sinto é o incômodo de ter que...
Não quero ter que...
Quero deixar de,
De ter que...
Agora vou parar um pouco.

Escrevo para que saibas, nesta declaração tão íntima que faço, que nem mesmo sei o porque das coisas.
Faço com esperança de que me dê as respostas para o que ainda não foi perguntado.
O que é meu eu te dou, esta espécie de sensação sem atos, que quando eu te beijo, beijo, beijo, a curva do teu braço, a cavidade do teu umbigo.
O absoluto sem palavras e fora do lugar comum.

Não vê que isto, o modo como eu te quero,
é o precioso amor que te darei?

Um comentário:

Unknown disse...

Êta, erótico esse não-corpo, q. n. delimita e só expande, muito além do desejo.
Bjão. Solange Canabrava