sexta-feira, 12 de outubro de 2007

'Lava' - deriva do italiano, da palavra latina labes que significa queda, declive, ou penetrar.

Os dias estão esplêndidos. As estações intermediárias são intensas e de uma luz muito branca. A temperatura é amena e a noite desce devagar no céu do bairro de Botafogo onde do pequeno terraço vigio o movimento da rua. O cristo redentor, o letreiro da padaria da esquina e o morro Dona Marta, acendem. Anoiteceu. Fico deitada no escuro, os pés descansam na água, o corpo estirado a sentir o calor da madeira que ainda guarda o sol que se fez quente na primavera. Estou grata. A noite se instala fria, um vento leve me traz imperceptíveis tremores mas permaneço com olhos no céu estrelado e ao meu redor o cenário, pessoas na rua, carros. A vida comprovada por barulhos, casas, vozes espaçadas. Também eu sou um som, um pensamento, uma respiração.

Devo confessar: volta e meia tenho dúvidas sobre a veracidade da vida. Porque a verdade é apenas mais um conceito e quando me perguntam se é verdade o que escrevo, sorrio. É claro que sim. É claro que não. A verdade e a mentira estão juntas, coexistem na simbiose da criação. Se sustentam. Vasculham o que está lá embaixo, ou talvez, muito acima do que enxergo, são traduções de movimentos, pesquisa, documentação da existência, revirar de papeis, fotos e guardados de quem fui, ou daquilo que me parece ser.
Abra-se o arquivo morto e a vida se fará. Vou construir verdades? Mentira...

Há quem acredite que o escritor, o cronista, precisa de um fato acontecido, ou melhor, apenas de um fato. Posso dizer que quando escrevo preciso somente do que for autêntico porque a mentira autêntica é de uma verdade enrubescedora. O autêntico é palavra-sentimento. Não tem antes nem depois, é o momento que escrevo, já, o instante acontecendo. A vida está aqui e não posso mais com decisões, análises e resultados, estou farta dos cartórios, a vida é berço do tempo presente, a vida é uma prática, o que posso dizer é que não há mais lugar para a burocracia. O agora está vivo e todo o resto está morto. A vida é. E a quero atrelada em mim, eu montada nela. Estou em todas as realidades. Na minha respiração, sozinha. Estou no é.

Fico a olhar através do vidro, estou a pintar sem pincéis, sem nenhuma tinta, estou a pintar sentindo por dentro o desenrolar deste mundo. Sou o personagem que pulou a janela e foi conhecer cada palavra, aquilo que estava escrito. Destranquei, balancei pernas sobre o batente, saltei, abri os braços para que o sol me cegasse e me aquecesse. Viver é contraditório. Porque o medo é enorme mas o céu é azul. Viver parece de mentira. Porque não me é permitido voltar um passo atrás mas um aterrorizante alívio se aloja logo abaixo das minhas costelas. A vida pode ser violenta. Abrir a janela, saltar.

Ouço tua voz.
- Eu senti e amei, do amor mais puro e infernal, enlouqueço mansamente, sou feliz mas a vida me parece errada, o amor me enfraquece com seus minutos de morte, e me parece estranho que morrer possa ser prazeroso. E eu gosto desta morte, eu gosto com aquele tipo de urgência de quem não terá amanhã.

Ouço tua voz.
Estou parada. O corpo não me revela, mas minha mente trabalha em velocidade-luz e me deixa sem espaço para qualquer gesto que não seja o de respeitosamente ouvir. Estou de olhos fechados para que as palavras não sejam apenas palavras, raizes mortas. A palavra respira. A palavra é. Ouço.
Angústia.
Tormento.
Sonho.
Nada é mais autêntico do que a minha vontade de estender o braço e deixar que a mão descanse sobre o ponto exato, mediano, ali no deserto do tórax, por onde jorram as palavras que aparentemente saem da tua boca. Te olho. A boca é um lugar vazio por onde o ar transita. E é no discreto vale, pequena depressão do corpo, onde vejo ondular as lavas excessivamente quentes, a matéria prima das palavras.

Autêntico é o muito deste amor feito da emoção raptada.
Deste amor feito de pequenas mortes em vida.
Desta vida sob a vigilância do mundo.
Deste amor que me foi contado quando estendi o braço e as palavras estavam vivas.

Um comentário:

sensação de violeta disse...

Meus Deus!!!vc retira todas as palavras de dentro de mim e eu ainda tenho que ter algumas pra fazer um comentário decente.
Que imagens que vc projeta nesse texto!!que essência vc dá as palavras!! e que contradição é a vida!!! Tb estou cansada de burocracias!!!hehe
beijos