sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A Presença Dela

Acordo. Ainda escuro. Abro olhos sonolentos resistentes e cansados, para ver a cor da aurora, a cor que antecede ao amanhecer, a cor que só dura alguns minutos. Penso em dar um nome para o que só se pode sentir. Impossível.
O Cristo Redentor está bonito nesta hora estranha de abandono e nem sei porque penso em comprar uma cortina.

O céu antes do amanhecer é mágico e me deixa sempre muito emotiva, em uma mistura de curiosidade e esperança ao saber que virá me invadir o nunca antes experimentado, este tom que todo dia se transforma, esta cor abstrata de outros mundos, que me confunde. Vem e passa por meus olhos, um véu de ausência enquanto eu me perdia em classificar o encanto.

Tento me mexer na cama e sinto um peso sobre o peito.
Ela está displicente e bem junto ao meu corpo. Acordo realmente do sonho, me assusto com a presença dela, sua cabeça no meu ombro, suas mãos nos meus cabelos e as pernas trançadas entre as minhas. A respiração profunda no meu pescoço.
Assusto. Tento me desvencilhar mas o movimento parece me colocar mais e mais prisioneira e sem espaço. Respiro e penso. Busco uma saída.

Ela me conhece.
Eu não a quero.

Não posso negar, tem mãos bonitas e adivinha meus pensamentos. Para além da beleza ela me conhece. E como se morasse aqui dentro, em mim, ela trilha o desconhecido para chegar, onde nem mesmo eu saberia, no lugar obscuro e sem passagens. Ela chega com elegância naquele porto onde existe todo o mal e onde sinto que me fere um tal espinho taquicardíaco incessante. Como se morasse aqui dentro na intimidade do escuro ela pousa as mãos delicadas sobre as bordas da pele lasceradas pelo espinho. Para que a dor se dilua, e somente para que eu sinta sua presença anestésica, ela coloca bem ali suas mãos finas, e eu a aceito.
Para que todo o mal passe ela vive dentro de mim.

Neste ato eu a amo de um amor imenso e agradecido.
Amo como um faminto que recebe o pão amanhecido, e deste modo amo por tão pouco, por este quase nada intenso que me parece único e infinito.
Ela trilha, abre estradas e por onde passa, lânguida e discreta, deixa o rastro como se fosse parte do lugar obscuro pois sabe exatamente onde chegar. Entra me descobrindo, no verdadeiro sentido da palavra, me retalha em lâminas transparentes.

Devo dizer que ela se parece muito comigo. Gosta de ouvir Cássia Eller, Etta James, e certos Sambas chorados que me fazem sorrir. Ela me surpreende quando vejo que tem por princípio um jeito debochado subversivo e quando diz coisas breves definitivas e me faz chorar em silêncio de raiva, dor, assombro diante da lucidez excessiva que me obriga a engolir como um remédio amargo.

Acordei e ela estava ao meu lado. Assusto. Sempre. Ela não me deixa dormir.

Ela me paralisa e passeia com a língua, em alamedas, com certa displicência e risos, no flanco posterior da minha orelha. E depois cria palavras nunca antes ditas, ela sabe fazer poesia como ninguém, e este seu talento me anima a olhar de novo o dia já claro e azul, ela é assim: o oposto do oposto do oposto, e eu nunca sei ao certo se o gosto é bom. E eu sempre quero um pouco mais daquilo que me apavora, não sei mais existir, é existir, sem a ternura que me ama e me enfraquece, que me perfura e me beija o sangue gotejado do tal espinho taquicardíaco.

Ela me conhece.
Eu não a quero.

Eu não a quero mas ela me conhece e dorme comigo e me faz acordar no meio da noite, para sentir a vida sob outra perspectiva, ela me pega abaixo das costelas, sinto uma pontada e nem sei bem se é por dor, medo ou prazer que estremeço, e já em seguida me falta o ar quando sinto suas mãos que me prendem pela cintura e me diz que não há criação sem melancolia.

Ela me acorda e me entrega o mundo desconhecido da noite e me faz ser quem não sou sendo quem eu sou: o emaranhado, a cacofonia....se deita ao meu lado e entre nós o silêncio, o invisível movimento das cores que entram pela janela. Confessa que está dentro mim para comprovar as alegrias, me dá insônias e mostra o espetáculo solitário da casa vazia, dos movimentos inanimados. Confessa que me ama na madrugada com um desejo de morte para me inspirar os dias porque assim faz a felicidade fugidia ser a minha mais obsessiva vontade.

Ela me doma com pernas fortes e violência mas já sabendo que me terá de qualquer forma, que estou entregue e sem resistência, que a quero na rebeldia e na irreverência e espero ansiosa o depois que chega manso em braços macios e aromas inusitados. Tudo o que vi não me será tirado, aquilo que senti não se repetirá. Deixo que venham as madrugadas cheia de cores lentas e permito que ela me tenha porque não sei exatamente o que colocar no seu lugar.

Ela me conhece. Eu a quero. Amo. De um amor agradecido.
Ela é a tristeza que nasceu comigo. É aquela que nunca me abandona e se faz sempre nova.
É como a cor abstrata que só é possivel um pouco antes do amanhecer.


*ao amigo que contribuiu para essa viagem: remo trajano

3 comentários:

Anônimo disse...

feliz por ter contribuído para forma tão sincera de depor a favor do afeto

Unknown disse...

Desse jeito, tenho q torcer para q. continues com essa melancolia q. te inspira lindamente. Bjos.Solange Canabrava.

Carol Aquini disse...

Sem palavras, sério. Adorei!!!
Me deu vontade de escrever...

Beijos enormes