sábado, 10 de setembro de 2011

Lutos

Lutos
Pior do que o tabu da morte, é a vida em luto.
Já conheci a a ausência, a ausência definitiva. É como se a vida estivesse em todos os lugares, menos dentro da gente, é como se a vida não te pertencesse, é como ser outra pessoa. Porque o luto é devastador. O luto desarruma, por dentro e por fora, impregna de impotência e humilhação.
O luto é necessáio e hoje eu compreendo o quanto é preciso. O sofrimento atroz, o poço fundo. Eu sei o que é ficar estirado no chão, sem conseguir sentir que ainda existe sim, aquela pessoa que você foi um dia. É a sensação de desaparecer, não é morrer. É sumir. A alma vai embora, a alma deixa o corpo e então fica difícil viver. Como se vive sem a alma?
Eu já escrevi que a minha alma de vez em quando passeia, foge, vai vagabundear por aí. Mas é coisa consentida, é pura pilantragem de um modo de ser feliz .
Não sentir a própria alma é o manto de um luto inteiro a te encobrir. Vem uma dor esmagada. É a alma encolhida, a alma que está falecida dentro de nós.
Quando meu pai morreu não me deixaram ir ao enterro. Bom, as pessoas agem segundo suas próprias carências. Então, todos concordaram que aquele assustador momento, tinha que ser apagado. Mas querer apagar antes de esquecer é tentar fingir que não aconteceu. Seria triste eu estar no enterro do meu pai, pois ninguém sabia lidar com a situação do meu luto que se mostrava silencioso, ninguém queria arriscar mudar a calmaria daquele luto inocente. Uma criança orfã é a expressão do abandono, é a fragilidade do mundo adulto, a falta de explicação. Ninguém queria explicação para o silêncio da minha dor, e eu resolvi deixar, deixar.
Como eu desejei a despedida física, o adeus real. O concreto, a vida se movimentando, o adeus sem ilusão e sem a esperança de que algo extraordinário fosse acontecer, eu desejei ouvir e ver a verdade, aquela que não iria melhorar de repente, mas fazia a paralisia ter sentido.
A história que me restou para contar foi a de alguém que não pôde chorar, que teve vergonha de sofrer. Eu queria a minha história, queria a crueldade da vida, mas aprendi a fingir que não me doía. Enquanto isso, pensava racionalmente: como vou fazer agora, como vai ser? Quem eu vou ser, sem ele? Fiz muitos planos para essa equação. Mas a verdade, é que a minha vida, a partir daquela madrugada, a noite em que meu pai partiu, eu já adivinhara. Acordei cedo, antes de amanhecer, fazia muito frio, fui até a sala e vi minha mãe chorando de cabeça baixa. Tinha alguém com ela que me disse: vai dormir que não é nada, mas eu sabia que aquilo seria para sempre. E fui dormir calada esperando a tragédia.
Não poder vê-lo, nem no enterro, foi como se ele morresse duas vezes. Eu queria ter podido falar, ver meu pai, e sofrer sem a vergonha. Ele morreu duas vezes. E eu fiquei no personagem que me impuseram, fingindo que não estava entendendo nada. Eu queria ter dito que não me importava, nada importava, e que ele não ia morrer nunca. O pavor de esquecer me trouxe o imprevisto. Quanto mais eu me perdia da imagem, e da lembrança, sentia, eu sentia que a morte, que não existia a morte, não havia mais dor, eu e ele, a gente era uma coisa só. A gente era feito do imaterial amor. Então um dia pensei: agora vou começar de novo, agora vou ser outra pessoa.
A morte não é o meu maior medo. O meu grande medo é o luto em vida. Aquele que perturba e não passa, a escuridão que não vai embora, São as mortes que ficam dentro de nós, são as mortes em vida que precisam ser ultrapassadas. É não perder a alegria, é não se perder por aí. Largar a alma em qualquer companhia, deixar a alma ao relento, desprotegida no frio cortante, sem saber mais como voltar para casa. E é tão fácil se perder por aí.
Nascer novamente é um desafio. A grande pergunta é: quem eu vou colocar no lugar do buraco, no lugar do luto negro? Ah, não sei. Alguém. Ninguém. Talvez eu.
A verdade é que não tenho medo da morte. Eu não tenho medo da morte. Tenho muito medo é da vida, da vida mal vivida, da farsa hipócrita, da indiferença, da falta de coragem, tenho medo de complicar e perder o precioso tempo, tenho pavor da vulgaridade. Tenho medo de não conseguir ver o melhor. E o melhor é muito simples. Não é banal. É simples. A vida é simples.

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