segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Das Minhas Sinceras Lembranças

...Tem dias que o que eu mais queria era voltar para a barriga da minha mãe.
Sabe-se lá o que isso quer dizer além de medos, carências, colo...
Estou cansada.
Ando com os nervos estragados.

E não há nenhum fato incrível que me leve a esta constatação. São os acúmulos. Eu que já passei por sustos que me deixaram marcas na íris, estou fatigada com a indisfarçável falta de charme deste mundo.
O mundo é a casa de um cientista louco, onde tudo que você pensa pode existir e para além da imaginação, se o terrível não me chocar, me pego a elaborar uma plausível explicação. E me canso. Não há lógica para certos horrores. Eles incomodam porque refletem uma incapacidade ampliada, minha dificuldade para lidar com o mínimo. Espero que a filosofia, a literatura, o exercício do afeto - me salvem da inadequação, do constrangimento cotidiano que o superficial me causa. O mundo está desbotado. E mais assustador que a ausência de charme sabe ser o mau gosto.
Nem vou entrar no mérito! Outro dia talvez.

Como antídoto, preciso dos rituais, e a cada dia esta necessidade me põe mais esquisita, me deixa incontrolavelmente primitiva. É...primitiva e na contra mão, fora de certas condutas, por vezes ingênua, pois renego ter que descobrir o que não é mostrado - a vida como tradução ressentida e sem prazer. Onde foi parar o estilo, o detalhe, onde se escondeu o charme deste mundo?

Desejo o ritual. E desejar o ritual é recusar a imitação da vida. Quero a vida e não um código de barras, quero o inusitado e não a garantia morta, quero a piada fora de hora, a gafe, o improviso. Preciso do ritual para que ele me livre dos apegos e me eleve ao que é divino, para que me torne mais confiante nos meus dons, nas minhas virtudes e faça transparente a minha fraqueza. Preciso das fraquezas. Não me importo. O ritual me humaniza, me faz sentir a vida que existe na vida. A vida dentro. O fundo. A vida quente.

O amor é um ritual.
A amizade é um celeiro, é a fértil terra dos rituais de amor. Quem não entender isso que digo, não olhe nos meus olhos, não fale comigo, pois estou a procura dos lugares onde a vida existe.

Os rituais de amor. Os filhos, amores que alimento diariamente - com comida e sonhos - no mais atávico dos rituais. Sou das cavernas. Não sei muito bem. Sinto. Ensino o imponderável, reaprendo o que já sabia, estou a nadar na vida, não posso parar.

Uma vez no zoológico, os meninos pequenos, um deles recem-nascido, observávamos os gorilas, quando um funcionário me apontou a fêmea que adotara um filhote, aquele que sem a mãe biológica acabaria morrendo, deprimido, não me lembro claramente detalhes, sei que há uma relação entre cheiro materno e rejeição. No entanto os dois se entenderam e com o pequeno pendurado em seu corpo se fazia desfilar entre as enormes pedras do cativeiro. Eu sabia do que se tratava e não era ciência.
O que me parece é que a natureza é ampla, enigmática, poderosa. Tudo que é vivo surpreende. E o ritual é mais um modo de celebrar as surpresas.

Escrevi:

"Eu, como boa fêmea que sou, tenho instintos e não os nego, aceito e com satisfação os conservo, a todos. Quando o vejo, ele está sobre a cama e eu - como boa fêmea que sou – reajo, em um primeiro impulso quero lamber o peito nu, banhá-lo por inteiro, envolver seu corpo pequeno e inocente num balé de mãos, olhos, pele, e misterioso entendimento, quero banhá-lo, lamber a pele branca, as costas magras, os olhos ainda distantes, quero banhá-lo com a água benta da minha boca, protegê-lo e curá-lo, apresentá-lo ao mundo neste ritual que não aprendi, adivinho, tocar as mãos, tocar os pés e sentí-lo, como somente um animal pode fazer, com total irracionalidade."

Não era um sentimento, era uma crença.
Mostrei o texto para uma pessoa. Ela ficou muito empolgada e disse:

-(risos)
- Nossa, que erótico hein, qual é o foco, de onde você tirou isso?
- (...)
Não falei nada, fiquei até meio amuada. Desisti de explicar.
Hoje eu apenas diria:
- Ah, querida, erótica é a vida, é a vida.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Hoje é Vinte e Três

A ninguem nosso segredo revela
guardemos a felicidade que para este mundo não foi feita
E se aos outros vontade tola é o que aparenta
Saibamos protegê-la no cristal traslúcido de um frasco
Para quando juntos estivermos
Me baste apenas ver-te, ver-te
No perfume espalhado entre as estantes

A ninguém conto nosso segredo
que feliz germina em terra úmida
Zêlo maior que o meu ninguém alcança
Cuido que cresças,
Dou-te rimas exóticas, e desconheço
Para além deste jardim o mundo louco
Guardemos pois os risos, a beleza
Se a alegria cala a quem não ama, ao desatento

A ninguém nosso segredo revela
Guardemos a felicidade como quem deseja o que não pode ter
Lembra que o mundo lá fora está morto
Está cinza

Chamo teu nome
Abro portões, convido
Mas saibas do mundo proteger o que te entrego
O amor que desaprendi, confesso
Um jardim no meio do labirinto
Flores - flores - flores
E eu coberta de versos

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

'Lava' - deriva do italiano, da palavra latina labes que significa queda, declive, ou penetrar.

Os dias estão esplêndidos. As estações intermediárias são intensas e de uma luz muito branca. A temperatura é amena e a noite desce devagar no céu do bairro de Botafogo onde do pequeno terraço vigio o movimento da rua. O cristo redentor, o letreiro da padaria da esquina e o morro Dona Marta, acendem. Anoiteceu. Fico deitada no escuro, os pés descansam na água, o corpo estirado a sentir o calor da madeira que ainda guarda o sol que se fez quente na primavera. Estou grata. A noite se instala fria, um vento leve me traz imperceptíveis tremores mas permaneço com olhos no céu estrelado e ao meu redor o cenário, pessoas na rua, carros. A vida comprovada por barulhos, casas, vozes espaçadas. Também eu sou um som, um pensamento, uma respiração.

Devo confessar: volta e meia tenho dúvidas sobre a veracidade da vida. Porque a verdade é apenas mais um conceito e quando me perguntam se é verdade o que escrevo, sorrio. É claro que sim. É claro que não. A verdade e a mentira estão juntas, coexistem na simbiose da criação. Se sustentam. Vasculham o que está lá embaixo, ou talvez, muito acima do que enxergo, são traduções de movimentos, pesquisa, documentação da existência, revirar de papeis, fotos e guardados de quem fui, ou daquilo que me parece ser.
Abra-se o arquivo morto e a vida se fará. Vou construir verdades? Mentira...

Há quem acredite que o escritor, o cronista, precisa de um fato acontecido, ou melhor, apenas de um fato. Posso dizer que quando escrevo preciso somente do que for autêntico porque a mentira autêntica é de uma verdade enrubescedora. O autêntico é palavra-sentimento. Não tem antes nem depois, é o momento que escrevo, já, o instante acontecendo. A vida está aqui e não posso mais com decisões, análises e resultados, estou farta dos cartórios, a vida é berço do tempo presente, a vida é uma prática, o que posso dizer é que não há mais lugar para a burocracia. O agora está vivo e todo o resto está morto. A vida é. E a quero atrelada em mim, eu montada nela. Estou em todas as realidades. Na minha respiração, sozinha. Estou no é.

Fico a olhar através do vidro, estou a pintar sem pincéis, sem nenhuma tinta, estou a pintar sentindo por dentro o desenrolar deste mundo. Sou o personagem que pulou a janela e foi conhecer cada palavra, aquilo que estava escrito. Destranquei, balancei pernas sobre o batente, saltei, abri os braços para que o sol me cegasse e me aquecesse. Viver é contraditório. Porque o medo é enorme mas o céu é azul. Viver parece de mentira. Porque não me é permitido voltar um passo atrás mas um aterrorizante alívio se aloja logo abaixo das minhas costelas. A vida pode ser violenta. Abrir a janela, saltar.

Ouço tua voz.
- Eu senti e amei, do amor mais puro e infernal, enlouqueço mansamente, sou feliz mas a vida me parece errada, o amor me enfraquece com seus minutos de morte, e me parece estranho que morrer possa ser prazeroso. E eu gosto desta morte, eu gosto com aquele tipo de urgência de quem não terá amanhã.

Ouço tua voz.
Estou parada. O corpo não me revela, mas minha mente trabalha em velocidade-luz e me deixa sem espaço para qualquer gesto que não seja o de respeitosamente ouvir. Estou de olhos fechados para que as palavras não sejam apenas palavras, raizes mortas. A palavra respira. A palavra é. Ouço.
Angústia.
Tormento.
Sonho.
Nada é mais autêntico do que a minha vontade de estender o braço e deixar que a mão descanse sobre o ponto exato, mediano, ali no deserto do tórax, por onde jorram as palavras que aparentemente saem da tua boca. Te olho. A boca é um lugar vazio por onde o ar transita. E é no discreto vale, pequena depressão do corpo, onde vejo ondular as lavas excessivamente quentes, a matéria prima das palavras.

Autêntico é o muito deste amor feito da emoção raptada.
Deste amor feito de pequenas mortes em vida.
Desta vida sob a vigilância do mundo.
Deste amor que me foi contado quando estendi o braço e as palavras estavam vivas.

domingo, 7 de outubro de 2007

Sábado

Sábado.
Saí.
Fui até a casa de V.
Gosto,um gostar sem aflições.
Lascas de salmão, queijo duro, azeite derramado sobre o prato.
Pão de centeio, vinho escuro e fresco.
Nada nos faria mais felizes do que a simplicidade.
Comemos, bebemos, celebramos. Dionísio e o tempo.
Havia música e silêncio no tranqüilo entendimento da impermanência.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

...Diário Intimo De Uma Vida...

Rio de Janeiro, 04 de Outubro de 2007 (17:53)

...Vagamente, como uma bruma a encobrir a paisagem que pouco a pouco fosse esvaindo e pedaços do que existe se mostrassem, mas não por completo, apenas o contorno e a idéia, a deixar para nós a escolha do desenho final.
...Vagamente, a madrugada, linda, aveludada, cansa aos olhos por muito, muito admirá-la mas são segundos tão encantados que aos nossos olhos não parecem reais, e chega a aurora, linda e tão mansamente, que não podemos vê-la chegar.

Começo este Diário. Sem nenhuma verdade ou pré-requisito estas palavras sem o menor sentido. Sem definição deixo estar, pois que até para a perfeição deste mundo houve a intervenção sem hora marcada. O acaso não é burlesco, o acaso é divino. Deus existe no despreparo, existe fora da receita, e também eu me apresento, como alguém que jogou fora o rascunho, vou contar a história sem nenhum enredo. Deste modo seguirei pelo avesso, e às vezes, vou ali, pelo direito, vou apenas escrever, escrever como quem escova os dentes, pela necessidade absoluta de se manter, na relutância e no prazer,com algum senso de normalidade. (assunto para depois)

Um diário, quem diria! Logo eu que tenho certos cansaços - também os tenho para o óbvio - e se realizo coisas, é por pura obrigação de existir com alguma dignidade, ou forte neurose mesmo. Afinal, nasci no final dos anos 60, sou mulher, já pensei sobre isso, a mola que move o mundo é a mola das compulsões e das neuroses, não a da inteligencia, ou da bondade, e seja de que gênero for, sim, foi este tipo de coisa estranha que nos fez chegar até aqui: cismas, neurastenias, loucuras e muita compulsão.

E nos obriga a ir em frente, isto sim senhor, esta espécie de necessidade sem nenhum glamour, que mal consigo explicar, e nem mesmo sei se devo, não quero ser didática, quero atirar a lógica ladeira abaixo, quero escrever este diário, deste modo - como quem dita para si a própria Bíblia. Que seja um diário, humano e intimo, cheio de poesia, tristeza e glória, o meu livro de notas e aberrações. Também o quero sem fórmulas e quando alguém o ler que faça sem procurar respostas, mas o sinta de forma única como eu o senti, que o tome como seu...

Então, vou começá-lo sem nenhum plano porque toda realização começa do desgoverno: neuroses e instinto de sobrevivência, e eu me qualifico entre essa multidão, solta por aí, sou movida por uma inquietação que me faz escrever. Aceito, oras, questionar o quê? Escrevo, e está dito, escrevo por pura neurose - nem sempre por gosto - e não sei exatamente em que buraco escuro esta vontade contraditória vive, onde este querer, não querer, se alimenta. É uma fome que não termina, uma falta que me alicia, e ainda que diga não - cansei, não quero mais - vem a vontade em busca da minha submissão. Porque a vontade selvagem me submete, me sufoca, e só me larga se escrevo.

Escrevo. O antigo, novo e desconcertante. Mentiras, verdades que não foram ditas, e invenções ainda não descobertas, não importa, eu desejo cada palavra, desejo capturá-las apenas porque preciso existir dentro delas, preciso de uma casa para morar. E vem junto um prazer, uma ausência de mim, vou me escrevendo no Diário - meu pequeno inventário intimo, este prazer maior que o sexo...