domingo, 26 de agosto de 2007

O Amor Incomum

O Amor Incomum


"Pudesse eu ser natural e simples, sem grandes pensamentos, sem pensamento nehum, para deixar a vida fluir como um rio que sabe ser continuo.
Pudesse eu ser como certas criaturas onde o pensamento não se demora, não se aloja, somente vive pela sorte de cinco míseros segundos, e rapidamente se derrama sobre a a realidade.

Os meus pensamentos existem quando escrevo. Por isso escrevo. Para curar a ressaca desta timidez cármica. Escrevo para entender a vida pela sedução da palavra. Subitamente quero escrever uma carta de amor. Uma carta de amor, eu te daria - de amor nenhum - mas do amor incomum feito de intenções onde eu não te diria coisas, estas coisas que todo mundo diz, mas te faria sentir a vida que está do outro lado da vida. Uma carta do amor incomum onde não te descreveria nos detalhes, corpo, cabelos, olhos, eu te daria um gosto, uma palavra nascida no céu da boca, um gosto acre-doce, misturado, a leveza ardente do tabasco. Quem me dera ter o talento de escrever uma frase que traduzisse não só a ti, mas a tua linda complexidade, não só a tua beleza, mas a tua força.

Pudesse eu te traduzir em frases, elas seriam simples, repletas de balanço, múltiplos significados e te trariam a certeza de que é para você que escrevo pois as palavras têm a mágica de se revelar. De me revelar. Porque entre as palavras estou mais presente, firme e diferente daqueles momentos em que só me ocorre o silêncio. Elas te explicariam aquilo que não sei, que me falta coragem de ser feliz na vida.

Uma carta de amor incomum eu faço agora no instante que me lês e nela coloco o mistério meu e teu coberto por palavras que ainda não soubemos decifrar. E neste momento, saiba que se trata de você, somente você, este mar de águas profundas, onde quero mergulhar."

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

José Maria José

José Maria José

Nascera com vocação para personagem.

E desde cedo, sob os holofotes do berçário, se destacara dentre tantos recém nascidos. O chorinho ritmado, a beleza natural que se mantinha interessante, mesmo quando dormia, conqusitava a atenção dos visitantes. Na mais tenra idade já pôde sentir a fonte do talento a se derramar sobre sua cabeça e, embalado por uma certeza interna, o carisma prematuramente já se manifestava. José Maria, era o bebê.

Tudo acontecia como em um filme onde ele se portava tal qual um veterano que sempre sabe o que fazer - desenhar, comer, chorar - sem nunca perder a deixa.

Não havia quem desse mais brilho ao que se supõe corriqueiro. Não subia em árvores, era o Tarzan. Polícia e ladrão, imbatível - ora do bem, ora do mal. Tropeçava ao pular corda, por certo era desengonçado, no entanto, as marcas espalhadas pelas pernas, os tombos - porque não dizer vexames - cobriam seu rosto com lágrimas sentidas - de modo que até o fracasso lhe caia bem.

Ninguém sabe dizer o motivo, o fato é que José Maria, do dia para a noite, virou Zé. Ele jamais contestou,pois pulsava mais forte o talento e o desejo de ser um bom personagem. Acostumou-se. Contudo, não seria mero figurante de uma vidinha tão sem propósito, afinal sua persona nunca o deixava na mão.Trazia a vida na ponta da língua como se fora um velho texto ao qual a memória feroz resgatara. Sem improviso.

Zé Maria borbulhava de orgulho, ao ouvir o próprio nome, escolhido por sua mãe. Não que ela fosse perfeita mas cumprira o papel de personagem-mãe a contento, não decepcionou, deu ao filho este patrimônio, o nome composto. Nosso esforçado amigo, já adulto, resolveu procurar uma numeróloga, em busca de confirmar o destino. Bobagem, Zé! Acaso não sabe que o destino não emite nota fiscal?

E veio então a revelação da numeróloga ruiva: Zé aproveitava mal seu potencial, era personagem restrito em suas concepções, não utilizava o poder do nome composto, que correto ou inverso, serviria a dois patrões. Maria José, José Maria, ora bolas, tanto faz - lhe explicou a estudiosa - possuia muitos pontos a se explorar, energeticamente falando... era preciso um texto original, de preferência inédito, pois que esse negócio de interpretação era pouco para tantos personagens contidos naquele nome.

- José, Maria José, Maria – sentenciou a mulher diante de um Zé estarrecido - põe ímpeto nesta vontade, se vira, vê se vira autor!!!

José Maria, sem conseguir encontrar o tom do momento, sentia uma insurreição escandalosa, náuseas, e todo o seu método de cultivar o personagem escoando pelo ralo. Na verdade, também ele, se cansara das mesmas velhas histórias.

Um motim lhe fazia tumulto pelo corpo, barulho de canhões, enfrentamentos, batalhas duríssimas.José Maria, ou qualquer nome que o valha, já não se importava, saiu pela rua, onde tudo parecia estranho - ele mesmo não se reconhecia, apenas percorria o caminho para casa.
O suor lhe gotejava a testa.
Através da janela a paisagem era imaginária.
Fechou as cortinas. Sentou-se. As mãos pousadas sobre o teclado.
O olhar novamente se perdeu, foi parar em outras terras,sem rumo, tomado pelo mais quixotesco de todos os personagens: o Autor.
(...)
Tudo em branco.Histórias, vidas para criar.
(...)
Onde foi parar todo mundo? Sei lá.
(...)

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Ser Normal...

Ser Normal...

O que é ser normal?

Pergunta difícil de responder. Ser clinicamente normal é raro, de acordo com um médico paulista que realiza uma pesquisa com remédios usados em distúrbios psiquiátricos. A maioria das pessoas tem em seu histórico algum fato neurótico, achaques, bipolaridade, depressão. Normal.

Esta entrevista me trouxe certo consolo, devo admitir, mas não quero falar da formalidade, da teoria das coisas.
Quero dizer o que é ser normal...assim mesmo com reticências.
Ser normal é ser a gente mesmo.
É poder, é ter o direito de ser único. É ser o que quiser. Ser normal é buscar um caminho próprio de amar, de viver, de pensar e não desistir, para que o mundo não nos transforme nos outros. No rebanho, seja lá do que for, ainda sim, rebanho.

Porque a vida não é uma constante, uma linha reta que liga dois pontos, a vida é um Labirinto que nos é dado - complicado, delicioso, sem saída - feito de compartimentos para se perder e se achar. Feito de pedras, muros, mares e tantos lugares indescritíveis - cantos - cheios de solidão. A vida é Labirinto onde o terrível Minotauro é o julgamento e, a normalidade social - aquela que vive na linha reta - é de uma loucura anestésica.
Ser normal é sentir a nossa própria coerência: certa, louca, incoerente. Nossa.
Ser normal é estar perdido, e dar gritos, mas saber que em meio a tantos caminhos há sempre um atalho.O Labirinto,a vida em forma de possibilidades.

Entremos.

Superfícies, espaços, curvas – subterrâneos - e ninguém se engane pois que em alguma cavidade há de encontrar o sofrimento e o labirinto se torna confuso, por vezes claustrofóbico. Precisamos de uma bússola com sua lógica inventada, capaz de todos os rumos, confiemos então nas idéias, e que nos fortaleça a intuição.

E acredite que no Labirinto também há jardins...jardins suspensos...
Construo, cuido, e lá vou ter com meus amigos, onde mora a beleza e o prazer, onde me alimento do que me é único e me deixo estar, respiro, descanso meus olhos. O lugar que é profundo, próximo, onde sinto toda a espécie de novidade, e percebo o desconhecido, alguém que me leva pela mão e diz: - Vem!!!
Eu vou, eu gosto, crio, eu existo.
Sou Senhor do Labirinto.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

A Saga do Chiclete

A saga do chiclete

Recebi este relato na qualidade de conselheira da S.O.S. Logo percebi se tratar de um caso curioso. Para quem está chegando agora, visando um melhor entendimento, aconselho a leitura do arquivo anterior, deste blog.

Uma das diretrizes da S.O.S é a crença nas forças da natureza e na existência de outros universos sendo importante ressaltar que mantemos especial admiração pelo planeta Vênus. Sabe-se, comprovadamente, que os venusianos caracterizam-se pelo sentimento, são gentis, amorosos, não se definem como masculino e feminino, se transmutam de acordo com a emoção e praticam com excelência a abdução. Considerando que somos os irmãos primitivos, a abdução pouco explorada por aqui, e corriqueira por lá, faz de nós objeto de estudo genealógico. Os habitantes deste astro brilhante têm o único objetivo de nos enriquecer, passar adiante conhecimento nas artes, na filosofia, no pensamento, e no bem viver. Entre nós muitos homens, como Galileu, foram inspirados por Vênus, e beneficiados pela abdução, o que torna bastante claro também o exemplo de Aristóteles, para quem o mundo se ampliou e, com lampejos de genialidade, criou toda sua lógica, silogismo, o pensamento calcado na sensação inefável de um pós-abduzido.

Isto posto, é fácil concluir que os vizinhos, irmãos interplanetários, não nos querem mal. A abdução é um ato transformador e saudável: o que está errado acerta, o quebrado conserta, expande as idéias e nos envolve em um aroma peculiar – encantador - posso dizer...não, não posso dizer, só quem viveu sabe. A questão é que, na maioria das vezes, não estamos preparados para a experiência da liberdade, isto sim nos dói até o último fio de cabelo. Temos um sentimento extremamente humano, o medo do novo, o que significa revelar por fim e a tempo: as emoções nos assustam.

Mas como toda essa história cabe em um chiclete? Vou explicar. Tudo está interligado, S.O. S, Vênus, a abdução, o ovo, etc, etc...estamos todos dentro de um contexto. Deste modo devo esclarecer que um dom ovíparo é a empatia, ou seja, ao ouvir o relato presenciei o momento e vivi todas as sutilezas deste acontecimento porque, acima de tudo, a sutileza é uma qualidade ovípara!!!

A missão do viajante das galáxias, recém chegado por estas terras, era conhecer os homens, no entanto, a abdução não se daria por mera futilidade, não, só se realizaria como ferramenta para desvendar mistérios.
Pois bem, acontece que a abdução não chegou a termo por culpa de um chiclete, o que a princípio não seria problema para aqueles que são os mestres dos mestres em fluir no movimento. Por outro lado, nosso amigo de Vênus, preparado para todo tipo de obstáculo, foi subitamente impedido pelo improvável. De tanto se sentir humano, de fato humano se tornou e naquele instante, na ante sala da abdução, havia um chiclete sendo distraidamente mascado. O que nosso herói não contava é com o humor, ao invés de abduzir começou a rir. Por quê? Eu não sei, ele não sabia. E, na verdade, isto pouco importava...

E àquela que me contou a história expliquei: para um venusiano o humor foi um sentimento poderoso, e como não bastasse havia também uma tal alegria, havia o riso, havia aquela Estrela da manhã, vista da terra, descortinando o dia...

E o chiclete, ela perguntou? Bem, querida, fica tranqüila, ele ainda tem a missão de resgatá-lo.

S.O.S : Sociedade Ovípara Secreta

Os fundamentos desta sociedade, a qual teve início nos primórdios da civilização Ocidental, encontram-se no matriarcado, no culto ao amor e ao feminino. Vida, célula, núcleo, liberdade. Tudo isso faz parte de um conceito onde o ovo, símbolo absoluto, se destaca pela simplicidade e perfeição. Assim, a escolha desta sigla não foi aleatória, o nome se tornou um código entre os participantes, código este que pode ser identificado no nosso cotidiano, nas tarefas banais, em uma breve conversa na fila do banco.

A quem me lê – e percebe esta explicação pouco lúdica, qualquer coisa burguesa, quase enfadonha – posso garantir se tratar de uma filosofia maior, que nada tem de tacanha. O fato é que me faltam palavras - ainda estou engatinhando na arte de ser ovíparo, e ser ovíparo é não precisar de palavras. Sim, sou apenas uma iniciada e muito tenho a aprender. Qualquer pessoa pode participar deste grupo, independente de sexo, raça, religião, pois não se trata de feminino ou masculino, e não há grandes teorias a se explicar, é muito mais um modo de ser.

Começo, pouco a pouco - a experimentar – sentir a oviparidade. Ainda estou neste degrau. Quando penso no ovíparo que me tornarei, é claro me lembro das aves, do ovo, penso nas galinhas com aquela desenvoltura simplória, trabalhadeira, algo alienada, poedeira e histérica. Beleza despercebida. Então, a convicção nesta filosofia se torna maior, tendo em vista a comprovação que mesmo ali, no alvoroço do galinheiro, o mundo está completo e harmônico. Estou eu aqui, a divagar, mas feliz posso dizer que a divagação é um exercício extremamente ovíparo. O extremo é ovíparo! – e pode ser complexo compreender - já que a sutileza também é a uma jóia ovípara. Chegarei lá...

De uma ponta à outra, retomo o fio desta meada, no que diz respeito aos primórdios da SOS. Relata a história não oficial - baseada em transcrições secretíssimas de documentos raros – que na Grécia Antiga vários pensadores e filósofos eram membros desta sociedade. Um deles, em especial, foi Ovídio, o grande poeta, rebelde e apaixonado. A ele toda SOS rende homenagem, e entre os mais ortodoxos, é visto como um mártir.

Ovídio foi o mestre dos mestres, e não foi o acaso. Representou a linhagem da beleza, da humanidade, deu ao mundo o modo de ser ovíparo. Fez seguidores como Shakespeare e todos aqueles poetas que não fazem apenas literatura - saltam, vão além - vivem a métrica sem retalhos e, acima de tudo, a sonoridade, a música perfeita que faz a poesia que não está nos versos, guarda a poesia que está na vida.

Sob encomenda ou o beijo que queria dar

Para Ananda que me sugeriu o tema e fez várias contribuições fundamentais ao texto, obrigada pela inspiração


“...os pares, se encontram, assim do modo que deve ser, naturalmente acontece porque para o sonho, quando você o deseja muito, todo o universo conspira, conspira no gesto, no gosto, na falta de lógica, conspira no beijo...
...o silêncio, o sentir do prenuncio - a pré morte – diante da aproximação de alguém, respiração, lenta como um vento quente da tarde que paralisa o corpo, a chegar tomando conta do espaço. E não há mais espaços, o que há, o que posso ver na curta distância que alcanço, onde meus olhos focam, são quadros, são as partes, lábios, reentrâncias, detalhes, me esperam, e que eu teimo em dizer me esperam, mas seria ingênuo qualquer ato da razão quando se sabe que não há tempo, não há esperança, o que há é a certeza de que os pensamentos atrapalham e os beijos se atraem...
...o som alto, as luzes, o ar quente da tarde, a multidão me engole mas sei que vou encontrá-lo aquele a quem hoje devotarei o resto do dia, são quatro horas da tarde, abafado, poeira, mas sei que vou encontrá-lo pois não existe lógica quando os pares se atraem...
...a noite continua quente, o céu negro, lua esfumaçada, quero fumar um cigarro, acende um, me passa, te olho entre a fumaça, e como me arrebata, tudo o que fazes sem querer, a espontaneidade tua me traz o silêncio, e essa música então, me faz camaleão, ausente, com meus pensamentos, me concentro mais em ti, me preencho, porque afinal só os corpos se atraem (penso no Manuel, velho poeta, quantas vezes me salvou)

“- As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”...

..vem, vem meu bem porque o meu colo te espera, quero perder este foco, da boca e da curva do teu queixo, dos pequenos nódulos da tua garganta e com todas as partes que não vejo vou construir um beijo, penso que a emoção também é uma forma de arte quanta coisa abstrata crio, quero essa arte agora quando te vejo, eu não te vejo, eu te beijo, e já não é mais o mesmo, é esta conjunção de pedaços que fazem espécie de arte que crio enquanto te beijo, porque eu não te beijo simplesmente, como quem faz uma rotina de todo dia, não são duas bocas que se tocam, se te beijo te esquadrinho, te descubro, te invento, não te beijo como quem dorme e acorda e acorda e sonha que sonhou mas nem sabe...porque eu não te beijo com a boca, eu te beijo é com o corpo inteiro!

domingo, 12 de agosto de 2007

SOBRE ANJOS

Restabelecimento. Devo dizer a todos que morri um pouco por esses dias e ainda estou renascendo. Tempos de resguardo e fragilidade. Morri um pouco na madrugada, morri um pouco ao meio dia, às quatro horas da tarde, o sol me deixava cega, o ar estava parado, eram quatro horas da tarde e eu já não me pertencia.

Quero flores, orquídeas, lilases, cenários e perfume, perfume para acordar a vida, acordar desta morte, da solidão grotesca que me roubou um pedaço da alma e me respirou a vida.

É que um anjo de ternura e tormento visitou-me na madrugada. Quando ele me encontrou eu estava distraída porque era outono e alta madrugada, o ar mais frio e a noite brilhante me trouxeram a falsa impressão de estar protegida. Quisera eu ter na minha natureza uma seriedade magistrada, uma frieza científica feita de lógica, dedução e método. Meu Deus, quando vou aprender a carregar a razão a tiracolo?
Mas não. Achei graça, dei asas ao anjo - sorri, o sorriso dos olhos, contei as melhores histórias - permiti que ele se aproximasse: incerteza, céu e inferno, homem, mulher, inocência e crueldade. Desejei estar ali e atravessar a noite entre suas asas, leves, grandes, afiadas...

Ele respirou em mim, soprou em minha boca aquelas palavras estranhas, e ainda que me seja proibido tocar em anjos, ele me tomou o ar, e ficou no lugar, sem que eu me desse conta, uma solidão carnívora. E de tal maneira se alojou entre as minhas costelas, na minha traquéia, me deixou sem fala, fez doer o meio do peito, me tirou as forças e criou uma dor sombria. Porque eu deixei e porque estivesse desatenta, me perdi de mim e restou apenas uma solidão dentada.

Custa a sarar o rasgo entre as costelas, a dor incômoda próxima às axilas, por onde minha alma fugiu e foi passear por aí.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

QUATRO DE JANEIRO DE DOIS MIL E SETE

Quatro de janeiro de dois mil e sete. Não vou escrever números, só palavras. Palavra, palavra-som, cheia de um inenarrável significado, palavra música clássica, incidental e inconsciente. Poesia.aiseoP PoesiA.AiseoP.Poesia.

Escrevo as palavras com a voracidade de quem procura algo acima de, na profundidade, abaixo de, na escuridão maior, na tangente. É um jogo entre nós, a palavra nunca me alcança, porque eu preciso daquilo que não é, do que passa no acostamento, eu preciso do não significado. Eu preciso da palavra viva.
Procurar, procurar, verbo cheio de angustia e possibilidade...

Conheci uma vez um homem que era procurador de tesouros, quisera eu ser como ele ter o olhar distante, a pele queimada, pescador de histórias e do silêncio imortal do mar. Não quero objetos. Vou procurar a simplicidade, esta pequena pérola perdida.

Estou escrevendo o ano de dois mil e sete. Já ancorei nele. Começa a expedição.
Quisera eu acordar diferente no ano que começa. Alguém melhor do que até hoje fui e sem esta confusão de ser. Quisera estar resolvida. Ter esvaziado a bolsa dos velhos papeis, contas pagas, frases, o amor que não pediram, os mal entendidos e nas reticências colocar ponto final. Quisera eu não ter sentimentos maiores do que posso suportar, tê-los corretos acerca de, acerca do, baseado em, ser mais adequada a respeito de todas as decisões e que isso me trouxesse uma fleumática sensatez.

Quisera eu que o novo ano me limpasse o alvoroço da alma, o modo insensato de gostar e me trouxesse uma esperança em gotas, diariamente, para que ela nunca me faltasse e fosse me revirando as cismas e me levasse os recalques e fosse me curando devagarinho as tristezas, pois até mesmo das tristezas a gente pode sentir falta.

- Chega logo Ano Bom e me livra dos extremos, diz abra-te sésamo, para que eu possa entrar, me faça ser previsível e lógica, sem desatinos e insônias, e me dá novos olhos para enxergar o mundo que meu teimoso coração não quer.

Que eu tenha menos atitudes, mais lentidão e mais verdade, sem as enormes agitações do espírito. Sou paciente, é certo, mas tem um mar profundo em mim, um lugar onde minha respiração não alcança, onde ouço trombetas, onde o meu desejo mais recôndito é temer os mistérios e ao mesmo tempo desejá-los.

Vem dois mil e sete não estou presa a nenhum fado, penso, faço, sinto, mudo, no entanto, dentro de mim ainda mora um desespero oculto - dores que chorei e não passam - por isso mesmo viver não deve ser um ato medíocre, quero estar dentro da vida para que ela me viva, quero a vida como ela me quer: de todos as maneiras. Deixo que ela venha para aceitá-la complexa, finda e sobrenatural.
Dá-me tudo isso porque estou pronta, mas dá-me sobretudo um coração bondoso e compassivo onde as vidas possam encontrar abrigo.