terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Cena de Cinema

na ponte Rio-niterói tudo tudo suspenso o dia nasce comigo neste cenário de céu feito de cor ainda não pintada jóia lilás brilhante névoa mutante sobre a ponte o carro eu e o inédito mundo da cor em movimento agora lilás azulada também eu uma cor que já não sou a todo instante nova estou diferente na virada de lua depois da madrugada do escuro da noite da cor do beijo do escuro da noite do escuro da noite uma cor que já não sou eu sou um beijo de olhos abertos no céu o lilás azulado leve clareado me faz lembrar que o tempo passou faz tempo que o tempo está aqui dentro passando


o tempo que o tempo reforça o tempo que o tempo reforça o tempo mais belo na vida que se viveu e que se quis autor personagem e diretor bem sei quem sou em certas madrugadas
cinema som lilas brilhante azulada violeta cor transformada
cena de cinema em mim e dentro do carro estou no cenario
ponte rio niterói de volta para casa


domingo, 16 de novembro de 2008

Fragmentos Da História

...eu não penso em sexo, faz tempo deixei de pensar.
Pois bem devo falar a verdade. Somente o destemor da verdade vale a pena.
Sexo é mito. Mito a ser incorporado. O que faço todos os dias.
Sexo é um mito a ser bebido no café da manhã. Misturado ao leite, colocado no chá.
Agora, neste momento, que a gente conversa eu quero dizer que o mito nos serve de símbolo e vaga lembrança - fica congelado - está na realidade à espera da vida. Atavismo.

Quando nos encontramos para o cappuccino do fim da tarde, um pouco de espuma no canto da boca te retrata - e ao teu jeito muito peculiar de olhar ao longe. Chamo teu nome, chamo por dentro. Atavismo, mito, recordação do que ainda vai acontecer.

Os mitos de cada herói o definem. Devemos ser os heróis de nós mesmos e nos salvar a todo instante.
Viver o mito do sexo que repousa na mão sobre as minhas costas - quando te encontro no acaso do dia - e ausente de ti meu pensamento, sem o teu corpo, o mito clama pela vida.

Sexo é detalhe.
Ou de uma outra maneira pode ser o todo - com todas as partes.
Sexo é somente um dos detalhes que te compõem. Penso o todo e você a parte. Não consigo lembrar do teu corpo. Tenho tal incapacidade. O esforço de lembrar me cansa.
Não revelo a outros, nem mesmo entre fieis amigas nas noites de vinho e confissões picantes. Não revelo o que não tenho para comentar. Aliás, confissões picantes em geral me parecem fantasia, porque lembrar é uma forma correta de mentir.

De modo que, não te ressintas da verdade, mais minha do que tua: não lembro do teu corpo.
Não lembrar é um elogio que te faço, acredite. O corpo é invenção de quem precisa do limite. A infantil invenção do corpo deu nesta história moderna e previsível de encontros, verdades que aprisionam, vontades que enlouquecem, obrigações de sentimentos. Pasteurização.
O corpo, a nossa maior prisão.
O corpo subverte o sentir. O corpo, como o concebemos, traça a mecânica do desejo. Então, não lembrar é poderoso. Deixa as impressões que estas sim, cuidarão de ti, em mim.
A impressão é como um quebra-cabeça sempre incompleto, ou que se mostra na medida que nos ocupamos dele, e se completa apenas por uns minutos, aqueles minutos em que posso te ver.
Sou como uma exêntrica Penélope, a te fiar arduamente para te desmanchar depois.

Sexo é rótulo.
E rótulo me desgasta. Eu arranco, rasgo. Desprezo.
Rótulo nenhum me prende. Rótulo nenhum me define.
O amor eu jogo fora o amor que não é meu. Este amor asséptico, não.
Quero o amor meu amor subversivo absoluto, anárquico leal, sem pronome e propriedade.
Amor meu, amado meu, me faça ver nos teus olhos a cor dos meus.

Eu não quero ser tua. Eu quero ser minha e que tu sejas teu. Quem sabe te alcanço um dia, nestes dias tão iguais, numa manhã banal eu descubra - como verdadeiramente és e nem mesmo tu sabias – e no inesperado silêncio que se fará, vou te beijar sim, sem nenhum desejo, eu vou te beijar sim, como nunca antes percebeste - neste modo de beijar tão puro e arrebatador da falta de desejo.

Nesta manhã de sol ainda que qualquer coisa fria - eu, em camisa de malha branca, em calça de pijama, o café me embaça os olhos enquanto eu sopro a fumaça entre nós, entre nós o ar perfumado.

Súbito, te beijei no frio Domingo, te beijei na normalidade do feriado. Acabou-se o mito, começa a vida, no mais erótico atavismo. De olhos abertos te beijei com a falta de motivo que rondava a manhã, quando sou então um pouco tua e tu és um pouco meu. Eu estou brilhando, e não me importa o corpo e nenhuma certeza sobre coisa alguma. O que posso querer além do sentido concreto que nasce quando te olho, quando me vejo? Presta atenção me escuta: não preciso de um corpo.

O sexo é um mito como o corpo que me limita o sentir. O corpo é um limite mais repressor do que a confissão católica. O corpo é o depositário de todas as confissões feitas, de todas as declarações sussurradas com angústia.
Deus, me livra do corpo, do corpo tecnocrata.
O divino me humaniza. Deus não tem corpo.
Estou no breve momento em que toco sua nuca na manhã fria. Entre uma golada e outra de café, embalada pela rotina estou, sem nenhuma conversa para ter. A dádiva de não se ter nada a dizer. A plenitude de não precisar falar.
Pouso minha mão sobre a sua, e isto nada representa.
Sento ao seu lado.
Súbito, te beijo na fria manhã, te beijo na normalidade do feriado.
É nos seus olhos que vejo minhas pernas entrelaçadas no seu pescoço e sinto as mãos tão obviamente masculinas nas minhas ancas, entre o vão dos meus ossos seus dedos. Um corpo deixa sim rastros na minha boca, deixa certas impressões na minha língua.
O café muito quente me aquece enquanto folheio o jornal.
E acontece o que acontece misturado ao pão quente de Domingo. No momento em que te beijei sem nenhum desejo.
Não queira me entender, ou se o fizer que seja sem aflições.
Um pouco de desconserto é sempre bem vindo.
Eu estou nas pequenas coisas e não tenha medo de nada porque tudo nos é permitido.
Peço que não tenha medo. A recriação de si mesmo não é tarefa fácil para quem é o próprio algoz e carceireiro. Estar vivo pode ser desconfortável.
Não é fácil. Para quem ousou não precisar nem do corpo. Para quem se desobrigou, o mundo quer o castigo.
O que sinto é o incômodo de ter que...
Não quero ter que...
Quero deixar de,
De ter que...
Agora vou parar um pouco.

Escrevo para que saibas, nesta declaração tão íntima que faço, que nem mesmo sei o porque das coisas.
Faço com esperança de que me dê as respostas para o que ainda não foi perguntado.
O que é meu eu te dou, esta espécie de sensação sem atos, que quando eu te beijo, beijo, beijo, a curva do teu braço, a cavidade do teu umbigo.
O absoluto sem palavras e fora do lugar comum.

Não vê que isto, o modo como eu te quero,
é o precioso amor que te darei?

sábado, 27 de setembro de 2008

Ms. Holiday Sings



Noite de Outono
O dia passou sereno
Ficou arrumado na prateleira
Em linha reta
Ao longe,
Ouço o sino da Igreja que quando badala
Às seis horas da tarde
O sagrado avisa
Que um pouco da vida morreu
Mas os anjos estão a caminho
Preparando a noite fria
Com uma pincelada mal acabada no Céu

A noite é fria, e é linda
A noite é fria, e é linda
Como as mulheres que existem de verdade
No escuro das cores opacas

Meu roupão é branco e felpudo
Os cabelos estão molhados
A luz do abajur ilumina o livro

E e
smaece o quarto
Súbito e monossilábico ele entra
E agora é dele o meu santuário
Livro fechado, pulo da cama
Pego o vinil
Ms. Holliday na vitrola
Arranha, som e poeira
O cheiro de lavanda e rua
Confundem o quarto
Fazem, a curva do meu dia

Murmuro em um abraço
O meu silêncio no pescoço dele
Lady Day sings

Enquanto veste-me de veludos
A sua voz de outros mundos
E me ensina a rouca melodia
A musica que me faz doer intesa e minimalista

A camisa de linho dele
Pálida,
Se mistura no encontro do bordado
Ao meu roupão excessivamente alvo
E ao úmido do meu cabelo lavado
Que me faz parecer ainda mais jovem

Pingos de água pelo chão
No meu roupão muito branco
Old fashioned sou eu
Quem solta os laços
Do meu roupão pueril antiquado
Envolto no cheiro da rua, o linho amassado
Enquanto Ms. Holiday sings embriagada de gim
Me ensina a dançar, a dança
Que eu não sei dançar, a dança
My sweet lady sings
Don't explain
Enquanto eu sinto por dentro
O ritmo tóxico do Blues

Sinto, logo, escrevo

- Você sabe?...
- Quê?
- Que você é estranha?
- Sou?
- É...(silêncio) (risos)
- Em que sentido?
- Estranhamente bom...(silêncio) (risos)

É o que dizem e quando não dizem pensam. Concordo. Tenho uma tendência para a estranheza, mas do tipo discreto, com uma vontade enjoativa de estar no contexto. Sei não, sei lá. A expressão: “sinto, logo existo” me atraí e me transforma em uma fábrica ambulante de equívocos. Nem sempre para mim, na maioria das vezes para os outros.Talvez, nascer antes do tempo, tenha me perturbado os nervos de tal forma que as adversidades, e até hoje, as situações dramáticas, provocam sentimentos heroicos. Urgência e medo me deixaram a percepção em outra freqüência, imprimiram a sensação de que a vida – por ser uma mistura do infinito com um breve instante – é uma melodia inacabada que precisa de um som, o som que irá pontuar a aventura da descoberta, do assombro e do frescor das alegrias. Viver é um tema musical variado onde em cada partitura se conta uma história. Ah, desde cedo ouço trilhas sonoras. Trabalho delicadamente, na ponta do lápis, a sentir o movimento das notas, a respiração, as pausas e na sucessão dos acontecimentos - fatiar, rechear, compor uma saga. Escrevo. Escrevo a bico de pena, esculpindo as letras em uma caligrafia nervosa e ininterrupta para que a vida seja um prazer dos sentidos. Escrevo como um dom de alfaiataria para vestir a realidade: interessante, original, sob medida. Escrevo a invenção da vida, e se abrem os portais ocultos. Sigo em frente. Não quero a explicação.  Vou simplesmente viver o mistério. Cavar, mergulhar, cuidar. 
Desembrulho palavras, ouço. Faço nascer outras vidas. Esqueço todas as crenças e atravesso o tempo blindada por este prazer. Finco nas distantes terras - onde ninguém outrora pisou - a minha bandeira sem rótulos. Escrevo.

Identidade

Sobre este assunto sou completamente ignorante. A cada dia me convenço que tenho um problema de identidade. Múltipla. Faço colagens e conto histórias e há quem diga que já fui uma pessoa séria muito embora sempre esquisitinha, pensando coisas que quase ninguém pensava. Depois descobri que na verdade andava comungando a hóstia errada mas, independente da paróquia, este é um traço da minha identidade - a dissonância. Percebi que ser canhota faz parte da minha personalidade, sem grandes guerrilhas, e com muitas doses de tolerância. É assim mesmo, estranho.
Segundo Cristina Braga, meu mapa é de uma esquizofrenia saudável.
Virgem com ascendente em Gêmeos, Lua em Leão, meio do Céu me Áries, com quase todos os planetas morando em uma mesma casa. Uma república confusa. Múltiplas identidades. De fato tenho emoções que só a astrologia explica, e minha mãe também. Ela me disse um dia, como a lamentar um defeito, que o meu problema é ter este jeito muito apaixonado. Ah, a sabedoria das mães.
Eu gosto de gente. Gosto de inteligencia, do que é diferente, e gosto de ser sozinha. Ter a Lua em Leão acho bonito mas nunca sei ao certo o que isto quer dizer. Queria estudar em Sorbonne, tocar flauta, e ter uma moto, fiz tudo ao contrário e foi bom. A flauta eu toco, a moto adoro. Como adoro nadar, escrever, filosofia, adoro comer.
Acordo de bom humor, ainda que esteja a esperar o amor como quem espera um táxi em dia de chuva.
Tudo bem, sou paciente.
Enquanto não chega, cultivo identidades secretas.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A Presença Dela

Acordo. Ainda escuro. Abro olhos sonolentos resistentes e cansados, para ver a cor da aurora, a cor que antecede ao amanhecer, a cor que só dura alguns minutos. Penso em dar um nome para o que só se pode sentir. Impossível.
O Cristo Redentor está bonito nesta hora estranha de abandono e nem sei porque penso em comprar uma cortina.

O céu antes do amanhecer é mágico e me deixa sempre muito emotiva, em uma mistura de curiosidade e esperança ao saber que virá me invadir o nunca antes experimentado, este tom que todo dia se transforma, esta cor abstrata de outros mundos, que me confunde. Vem e passa por meus olhos, um véu de ausência enquanto eu me perdia em classificar o encanto.

Tento me mexer na cama e sinto um peso sobre o peito.
Ela está displicente e bem junto ao meu corpo. Acordo realmente do sonho, me assusto com a presença dela, sua cabeça no meu ombro, suas mãos nos meus cabelos e as pernas trançadas entre as minhas. A respiração profunda no meu pescoço.
Assusto. Tento me desvencilhar mas o movimento parece me colocar mais e mais prisioneira e sem espaço. Respiro e penso. Busco uma saída.

Ela me conhece.
Eu não a quero.

Não posso negar, tem mãos bonitas e adivinha meus pensamentos. Para além da beleza ela me conhece. E como se morasse aqui dentro, em mim, ela trilha o desconhecido para chegar, onde nem mesmo eu saberia, no lugar obscuro e sem passagens. Ela chega com elegância naquele porto onde existe todo o mal e onde sinto que me fere um tal espinho taquicardíaco incessante. Como se morasse aqui dentro na intimidade do escuro ela pousa as mãos delicadas sobre as bordas da pele lasceradas pelo espinho. Para que a dor se dilua, e somente para que eu sinta sua presença anestésica, ela coloca bem ali suas mãos finas, e eu a aceito.
Para que todo o mal passe ela vive dentro de mim.

Neste ato eu a amo de um amor imenso e agradecido.
Amo como um faminto que recebe o pão amanhecido, e deste modo amo por tão pouco, por este quase nada intenso que me parece único e infinito.
Ela trilha, abre estradas e por onde passa, lânguida e discreta, deixa o rastro como se fosse parte do lugar obscuro pois sabe exatamente onde chegar. Entra me descobrindo, no verdadeiro sentido da palavra, me retalha em lâminas transparentes.

Devo dizer que ela se parece muito comigo. Gosta de ouvir Cássia Eller, Etta James, e certos Sambas chorados que me fazem sorrir. Ela me surpreende quando vejo que tem por princípio um jeito debochado subversivo e quando diz coisas breves definitivas e me faz chorar em silêncio de raiva, dor, assombro diante da lucidez excessiva que me obriga a engolir como um remédio amargo.

Acordei e ela estava ao meu lado. Assusto. Sempre. Ela não me deixa dormir.

Ela me paralisa e passeia com a língua, em alamedas, com certa displicência e risos, no flanco posterior da minha orelha. E depois cria palavras nunca antes ditas, ela sabe fazer poesia como ninguém, e este seu talento me anima a olhar de novo o dia já claro e azul, ela é assim: o oposto do oposto do oposto, e eu nunca sei ao certo se o gosto é bom. E eu sempre quero um pouco mais daquilo que me apavora, não sei mais existir, é existir, sem a ternura que me ama e me enfraquece, que me perfura e me beija o sangue gotejado do tal espinho taquicardíaco.

Ela me conhece.
Eu não a quero.

Eu não a quero mas ela me conhece e dorme comigo e me faz acordar no meio da noite, para sentir a vida sob outra perspectiva, ela me pega abaixo das costelas, sinto uma pontada e nem sei bem se é por dor, medo ou prazer que estremeço, e já em seguida me falta o ar quando sinto suas mãos que me prendem pela cintura e me diz que não há criação sem melancolia.

Ela me acorda e me entrega o mundo desconhecido da noite e me faz ser quem não sou sendo quem eu sou: o emaranhado, a cacofonia....se deita ao meu lado e entre nós o silêncio, o invisível movimento das cores que entram pela janela. Confessa que está dentro mim para comprovar as alegrias, me dá insônias e mostra o espetáculo solitário da casa vazia, dos movimentos inanimados. Confessa que me ama na madrugada com um desejo de morte para me inspirar os dias porque assim faz a felicidade fugidia ser a minha mais obsessiva vontade.

Ela me doma com pernas fortes e violência mas já sabendo que me terá de qualquer forma, que estou entregue e sem resistência, que a quero na rebeldia e na irreverência e espero ansiosa o depois que chega manso em braços macios e aromas inusitados. Tudo o que vi não me será tirado, aquilo que senti não se repetirá. Deixo que venham as madrugadas cheia de cores lentas e permito que ela me tenha porque não sei exatamente o que colocar no seu lugar.

Ela me conhece. Eu a quero. Amo. De um amor agradecido.
Ela é a tristeza que nasceu comigo. É aquela que nunca me abandona e se faz sempre nova.
É como a cor abstrata que só é possivel um pouco antes do amanhecer.


*ao amigo que contribuiu para essa viagem: remo trajano

sábado, 28 de junho de 2008

Assim é se te parece

Eu não quero ser diferente. Eu não quero ser estranha. Gostaria imensamente de desfrutar o calmo pasto do rebanho mas pressinto que boa parte da minha vida tenha sido gasta no esforço de passar despercebida e misturada aos demais. No entanto, quanto mais e mais tentei não causar relevo, o inverso deste desejo me pegava pelos ombros e me fazia saltar do tranqüilo anonimato. E só quis, durante boa parte da minha vida, me manter assim: no discreto ofício de sentir.

No fundo, creio que eu não seja um resultado, mas uma síntese de todos os inversos e contrários daquilo que tentei não ser. Sou um quebra-cabeça que a todo tempo se reorganiza. Sou de uma normalidade excêntrica.

Sou comum. Sou extremamente comum, muito embora procure as emoções dissonantes na previsível passagem dos dias. Por isto devo contar para que não se enganes comigo. Presumo que não saibas o quanto sou frágil, que tenho medo de alturas e não gosto da excitação dos perigos. Não espero que me entendas neste jeito próprio de olhar por todos os ângulos, a mania de virar a cabeça e querer sentir a vida por outra perspectiva ainda que com desconforto. Estou a me esforçar, olho, imagino, repagino o ambiente, e se te recorto em busca do original da tua vida é porque só posso amar aquilo que me surpreende, e se te surpreendes. Só posso te desejar se me ensinas a novidade do que eu já sabia. O cotidiano das pequenas coisas, os acontecimentos banais, as obviedades, me encantam.

Eu preciso te confessar um segredo:o imperceptível me arrebata, me comove, os pequenos detalhes me paralisam. E tudo isto, subitamente, se torna desnecessário, mas também precisa ser dito, sem medo do lugar comum. Grandes espetáculos se fazem sob o conjunto dos detalhes. Devo te lembrar que todos nós somos cegos e o que nos faz enxergar, ver o mundo, é a imaginação. Ah, quanto delírio escondido, quanta interpretação guarda o detalhe...

Saiba que de repente, me deu uma enorme vontade – uma vontade, originalmente comum e sem motivo aparente – uma vontade concreta e pura de entregar-me. Vou me entregar à minha mais profunda cegueira, beijar a palma da tua mão e te deixar este segundo imaginado que jamais termina, marcado para sempre.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

A Vida na Chama da Vela

...a madrugada tem mistérios que devem ser tomados como quem degusta uma bebida rara. A madrugada e seus mistérios devem chegar sem atropelos porque a revelação trazida no escuro da noite, no alvorecer do dia, pode ser incômoda, como um carinho que ainda não se está preparado para sentir. É preciso estar pronto para recebê-lo, pois o escuro da noite tem a doçura que não transborda. O silêncio da noite dorme balançante na chama da vela, a vida existe e eu a sinto, no cheiro de oliva e ervas. Eu respiro o escuro da noite que entra pela minha porta, a madrugada está simples e sem mistérios porque eu estou simples e sem mistérios, estou primitiva...

...meditar é não pensar, é outro estado de ser, é entender de um modo não humano, ir onde os pés não chegam, onde as mãos não tocam. Não há verbo no meu pensamento apenas o mistério dentro de mim. Não há razão, não há objetos, nem eu, nem você. O que há é a ausência do corpo noutro corpo profundo, onde não enxergo com estes meus olhos que parecem cegos. Medito. Já não preciso dos sentidos na madrugada porque eu a bebi vagarosamente e com delicadeza. Medito.

...A madrugada brilha, me toma, ela inteira e seus mistérios. O silêncio é intenso. Estou só e o silêncio é meu. Estou incrivelmente só. Não há o que temer, sou um eu sem eu, sem corpo, mas minhas mãos flamejantes tocam o escuro da noite, a madrugada, que recebo como um carinho que estou preparada para sentir. Meu espírito está em festa.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os Rituais do Silêncio

Atrás da porta só me resta o silêncio, as frases dos objetos, o meu proprio caminhar, o som dos gestos que faço. Eu faço gestos pela metade como em uma cena naturalista. Entro, mas deixo a porta entreaberta como um código, pois isso de alguma forma me revela. Penso no tudo que gostaria de falar, no discurso certo, tantas coisas que não sei, então eu deixo a porta entreaberta e só me resta o silêncio.

Eu sou deste modo.

Eu faço gestos pela metade e imagino tudo por inteiro porque a ação me é dificil e contida, mas não por falta de coragem e crença na minha intima vontade de estar onde estou, na tua frente, no mais absoluto silêncio de que uma pessoa é capaz.

Eu sou deste modo.

Atrás da porta só me resta o silêncio e gestos pela metade. Eu faço gestos pela metade, deixo a porta entreaberta, para te ver livre ao esticar o braço e sair. Eu te quero livre. Te quero sem a imoral necessidade de explicação. Não há o que explicar, não há verbo que seja maior do que aquilo que te entrego, essa nudez de silêncio, a necessidade de te ter. Não há o que dizer: estou à tua espera, como quem reza, como quem medita, estou no mais absoluto impacto da tua presença.

Atrás da porta só me resta o silêncio e gestos pela metade porque a palavra me constrange, a palavra limita o momento, a palavra não me alcança - eu que estou pelo avesso. Deixa-me então com aquilo que me escavou, deixa-me em silêncio, com os gestos pela metade e que, subitamente, me tomaram por inteiro. Diante da vida me consumindo qual a palavra cabe no meu silêncio? Não quero palavras, quero lavas.

Eu sou deste modo.

Eu faço gestos pela metade. Eu rezo em meu frenético silêncio, eu rezo para que o silêncio me venha acolhedor ao te olhar nos olhos. Como em um ritual já vivido e espontâneo, espero e fico minimalista. Observo os objetos, a luz, uma gravura na parede. Eu te espero. Estou a respirar incensos e a carregar óleos, quero ler o cântico dos cânticos, quero fazer poesia.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Fantasia

Pela janela passa brisa fresca e noturna. O barulho da rua se mistura, na escuridão sem lua, ao frigir suave das ondas. No ar um cheiro de maresia. Causam-me felicidade os odores e este, especialmente, entra pela janela, poroso e ardendo.

Já passa de meia-noite e o mar invade o quarto. Sinto areia arranhando as pernas, ouço a melodia que vem da praia e na escureza da noite, nas águas de maré vazante, batem mornas as espumas no úmido dos meus cabelos.
O céu escuro e macio se confunde comigo, Lilith, lua negra, sobre o mar.
Sou uma unidade de coisas, sou o começo do mundo.

Entra o ar perfumado, queima lentamente e doce e tão brando invade o pensamento esse cheiro. É impossível ignorá-lo, e como deixar de perceber o que é belo? Aquilo que nos sonhos se encontra, nas emoções involuntárias existe e em velhas canções palpita? O som antigo do mar acalentando a noite - feita de meia luz e penumbra – e este ar cerrado de maresia. Estou, sou, hoje e sempre, esta noite, este perfume.
Se nas mãos seguro areias, se na boca carrego sal, se entre as pernas sou mulher, como explicar a cauda de sereia?

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O Gosto Do Olhar

Eu gosto de olhar
Eu gosto de te olhar
Te olhar como quem vê pela primeira vez
E pela última
O assombro que é meu
Ao te ver
E te querer nos meus olhos

O todo não me interessa
A imagem do mundo
A grande angular
Não me excitam
Eu te gosto é no detalhe
Eu gosto é da curva
A curva da tua mão

O todo não me interessa
Eu te gosto é no detalhe
Do contorno do teu olho, o risco, a cor, a dor,
O brilho e o cansaço
Eu gosto mesmo é quando você me olha


Eu gosto muito, muito da tua voz
E mais, muito mais do teu silêncio,
Desta maneira tua sem som
Quando fico bem quieta ouvindo a tua respiração


Ah, eu adoro, adoro a tua beleza
A que espalhas pela rua
Declarada,
A tua beleza fratura exposta
Próspera, farta e inquieta
Mas o prazer da tua beleza pertence ao mundo
E a ele te dou sem medo
Porque eu te quero gostar nos detalhes
Da composição imperfeita
Dos teus olhos de breu
Da tua boca o formato
A cor ocre, o sabor de minério
Uma linha triste que se forma
Quando pensas que estou desatenta

Eu gosto de olhar
Eu gosto de te olhar
O todo não me interessa
Eu te quero amar em partes
Juntas em cada detalhe

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Som e Música

Estou silenciosa. Distante das palavras. Não quero explicar, preciso desta desobrigação do pensamento. Preciso mergulhar no instante das águas ainda serenas, no mar do silêncio profundo e inconsciente, preciso do exato instante anterior ao da primeira respiração, quando ainda não havia ordem, apenas eu, ou o vir a ser de uma existência, apenas eu e minha própria música.
Toda uma vida feita de trilhas sonoras. Esta sou eu. Lembranças musicais, impressões e notas. Para cada acontecimnento a emoção divaga, passeia, dança em mim. E agora estou a regredir ao encontro do silêncio. E regredir é bom. Como recuar concentrado, firme, a tomar novo impulso para o salto definitivo.
Regredir é como afastar, a passos largos fincar distância, para que o pulo seja a medida da liberdade, a possibilidade de se atingir a maior e mais perigosa profundidade do mergulho. Medo, coragem, abstração e silêncio. Quanto mais se avança para o salto, loucura e ausência.

Acontecimentos. Para todo acontencimento uma trilha sonora, uma maneira de compor a vida. A vida na partitura. Quando eu nasci tocou uma música suave e triste, mas havia tambores, enquanto podia me ouvir nesta confusão de contrastes.
Nascer, a morte absoluta, o desconhecido - nascer é obscuro - esta espécie de morte cheia de som e medo. Nascer foi um estrondo, uma sinfonia repleta de medo e bravura. Eu somente, a mistura de humildade e desejo, soar de tambores e fragilidade. Eu somente, dentro daquele som feito de desespero e êxtase. A respiração que era minha, só minha, o que me restava, o eco - um temor indescritível - o próprio desejo pela vida.
Agora estou silenciosa.
Estou a me ouvir, a me misturar com certos barulhos, estou no mais discreto sussurro, sussurro, sou um gemido, sou a voz sem palavras, sem verbo algum, sem orações. Estou a me ouvir no silêncio.
Eu sou o silêncio em uma outra apreensão do mundo. Suspiro, gemido, sussuro.Eu como o silêncio. Sou uma necessidade acima da ordem.
Eu sou aquela falta de som antes do nascimento.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Aquele Som

Estou silenciosa.
Distante das palavras.
Não quero explicar, preciso da desobrigação do pensamento, preciso não saber, preciso do silêncio, sem nenhuma trilha sonora. Quero descansar deste vício de tingir a vida e compor. Esta mania da beleza.
Estou silenciosa.
Quero apenas o som que vem muito antes do sentir, barulho, eco, música incidental.
Silêncio não é tristeza.
Descobri que sou assim, este movimento sem jazz.
Quem tiver ouvidos, ouça.

terça-feira, 25 de março de 2008

Da Arte de Ser Naif


Naif segundo o Houaiss:

- "diz-se de ou certo tipo de pintura, escultura etc. espontânea e autodidata, desvinculada de escolas convencionais, que resulta em composições primitivas, ger. detalhadas e de fácil compreensão"
- "que ou aquele que se caracteriza pela simplicidade, desconhecimento ou ingenuidade"


Gerson Alves de Souza. É naif.

Ele não possui uma técnica? Ingênuo, primitivo, autodidata?
Não importa.
Gerson é Naif e foi além. Criou sua propria técnica. A técnica da cor pulsante, da pintura viva. Com estilo, recortou o cotidiano e o colocou na moldura, encheu de graça e crítica histórias cansativas - reinventou o particular e se tornou universal.

Eu também sou naif e devo a ele a certeza de um dom a ser exercido e não um defeito a ser tolerado. Busco a simplicidade mais profunda e o traço complexo que nasce em lugares onde a técnica não alcança. Desejo desconhecer as artimanhas do pensamento e preciso sentir o que for autêntico. Ir além das palavras, enxergar o antigo e corriqueiro sob novas formas. O conteúdo, e não o conceito, me emociona, me emociona demais o que for peculiar. E o Gerson é assim. Peculiar e intenso. Naturalmente revolucionário, na estética, no olhar sobre o mundo, na compreensão do que é humano, naquele tom de vermelho só seu.

Estou de luto. Estou de luto mas minha dor não é sombria e meus trajes não são negros. Estou de luto em trajes coloridos porque a morte não existe. A morte é apenas mais um conceito. Meu luto, repleto de tintas e imagens, não é decorativo, nem figurado, estou como as mulheres da Lapa, com o olhar melancólico, mas quem ousaria dizer que não há esperança na tristeza transformada? A vida existe para os mortais - para o artista, a obra. Gerson está vivo, com o olhar doce, quente, inteligente. A vida é contínua e, para além dela, há um Céu que nos é entregue - e é aquele no qual nosso olhar existe - o lugar que a nossa força criativa constrói.
Ainda estou com os olhos do artista a me estudar, em sintonia com o pintor, o lírico, o poeta e sei que ele agora deve estar ocupado, observando, a inventar novas paletas para pintar o Céu com cores mais vivas.







quinta-feira, 20 de março de 2008

Do Avesso




A solidão é tanta e tamanha que cabe no espaço de um buraco de agulha.
E neste ponto no final da frase.